Porcos Humanos
- Júnior Figueiredo
- 21 de fev. de 2017
- 5 min de leitura

A água é muito sem atrativos, não tem cor, sabor ou cheiro algum. Se fosse boa mesmo não era de graça, muito menos caia do céu! Ensinaram-me que nessa vida tudo que é bom tem seu preço, custa caro e deve ser conquistado com muito suor e trabalho. Nunca vi lama cair do céu! Esta é a nossa moeda, é por ela que nos sacrificamos e temos a recompensa que nos é dada pelo nosso pastor de porcos.
Esse sim é um bom homem e sabe das coisas, não nos deixa faltar comida e todos os dias nos traz o suculento sabor do lixo, sobras e fezes que nos fazem feliz. Sou porco e assim vivo alegremente no meu exagero. Só tenho saudade de uma coisa: da minha infância. Ainda não tinha noção que era um porco. Não gostava da lama e nem daquela comida. Via apenas os outros da minha espécie lutando por um lugar no chiqueiro. Eu apenas brincava, saia correndo para todos os cantos sem me preocupar com que pensavam os mais velhos - como eu era feliz.
Lembro-me que certo dia me afastei um pouco do nosso chiqueiro. Estava longe e quase não via mais os outros. Só sei que quando dei por mim algo maravilhoso aconteceu. Uma coisa caiu com muita força sobre meu corpo, mas não me machucava, pelo contrário, tive a impressão que estava flutuando. Não sei explicar direito, mas vi que o sol reluzia seu brilho nele. E quão belo era esse brilho!
Os mais velhos sempre me orientaram a nunca ir para longe do lamaçal e, ainda, que não experimentasse outra coisa que não fosse lama. Desobedecendo-os, provei um pouco daquilo. Hum... Que maravilha, como foi diferente e inexplicável tudo que senti! Era como se uma força me tomasse por dentro e me levasse às alturas. Meu desejo era de morar ali e estar sempre perto daquilo. Lembro que não tinha cheiro nem cor e o seu sabor era tão suave que parecia não ter sabor e ainda assim era a melhor coisa do mundo.
Passei horas naquele lugar e ali me refresquei. Quando dei conta de mim percebi que tinha que voltar e avisar aos outros a grande descoberta. Queria que todos conhecessem aquele lugar e experimentassem daquilo. Não sabia o nome do que tinha provado, e eis que me veio um pássaro do céu. Pousou ao meu lado e disse-me: “Filho, nunca esqueças o que vistes agora, pois aqui é o teu lugar. Não importa o que te disserem os outros, mas saiba que aqui é o teu lugar. Nunca sejas o que te dizem que tu és, pois nem mesmo eles sabem o que são; guarde bem as minhas palavras: você pode ser o que quiser, basta querer Ser.
Não entendi bem o que me disse o pássaro e quando este estava com as asas a bater em revoada, perguntei: “Amigo, sou muito jovem, me diga onde estou e qual o nome dessa coisa que caiu sobre mim e que dela tomei?” e ele respondeu: “Ela vem da cachoeira e se quiseres encontrar novamente o que acabas de beber olhe ao seu redor, ela está por todos os lados, jorra em todas as direções. É um presente que nos foi dado; um dia quando cresceres, te taparão os olhos para que não enxergues o esplendor do seu brilho, te taparão o olfato para que não sintas o aroma que brota da sua essência, te taparão os ouvidos para que nunca mais ouças os sons das sinfonias que produzem suas quedas - tão fortes a ponto de destruir as mais resistentes rochas -, e tão suave que nos permite refrescar em sua fonte.
Cuidado! Alertou: Os que tu chamas de “minha espécie” serão capazes, até mesmo, de te cortar a língua se ousares experimentar tudo isso de novo.”Ao terminar essas palavras o pássaro deu um rasante nos céus e sumiu por entre as nuvens. Mesmo sem o entender, suas palavras ficaram guardadas. Pena que ele não me disse o nome daquilo que provei - apenas falou sobre essa tal cachoeira.
Então, no mesmo instante, saí correndo atônito de volta ao lamaçal para avisar aos outros do maravilhosa descoberta e que ninguém precisávamos mais ficar na lama, nem morar em chiqueiros - nosso lugar era na tal cachoeira.
Contei tudo aos meus pais, aos meus irmãos mais velhos e a todos os outros barrões que estavam por ali, mas ao invés de se animarem riam-se uns aos outros como se tudo que eu estivesse falando fosse mentira; como se estivesse louco e como se tudo fosse fruto da minha imaginação. Eles me disseram que nada era melhor que a lama e que eu ainda era muito jovem para entender das coisas de barrões.
Fiquei muito triste e me pus a chorar, sabia que o que tinha visto era real, mas ninguém me dava ouvidos! Parecia que estavam cegos, pois de muito longe ainda conseguia avistar aquilo que o pássaro chamara de cachoeira. Conseguia ouvir a sinfonia do seu barulho e o perfume que de lá brotava, mas somente eu os percebia. Então, como era muito jovem e de nada entendia mesmo, comecei a pensar que realmente poderia estar errado e que tudo não passara de uma fantasia da cabeça de garoto. Resolvi, seguir os outros da minha espécie.
Fui crescendo e aos poucos aquelas ilusões que tive na infância foram dando espaço as coisas concretas da vida. Tomei conta de minha identidade e vi que meu lugar era no chiqueiro com os outros. Diferente do que acontecia quando era jovem leitão, comecei a gostar da lama e vi que a comida que o nosso pastor nos dava não era tão ruim assim. Afinal ele era um homem bom, nos mantinha gordos e comíamos a vontade de tudo o que ele nos jogava.
Cresci, e hoje me tornei um belo barrão, sou respeitado no nosso habitat. Obedeço e consumo todas as coisas que me manda o senhor - a ele sou fiel. Graças a sua comida conquistei e conquisto tudo que quero. Cubro todas as fêmeas, alimento-me do primeiro lixo, tenho o melhor pedaço de lama, onde rolo para o lado que quero e dela posso beber com vigor.
Hoje, tenho tudo que um porco pode querer na vida. Só tem uma coisa que me irrita! Vez por outra um dos porcos foge do chiqueiro. Nosso senhor fica irado, o que também me indigna. Mas o que ainda me dá mais nojo é a forma como eles voltam. Não querem mais se misturar à nossa preciosa lama e começam a delirar. Chegam ao cúmulo de trocar o nosso precioso líquido por outro que não tem cor, sabor ou cheiro algum.
Eu nunca seria tão insensato de deixar minha lama por isso. São uns imbecis! Como disse, se isso fosse realmente importante, não cairia do céu, não jorrava por todas as partes e muito menos seria tão simples como é. Quando vêm me falar que esse líquido é maravilhoso eu abro as gaitadas, não sabem nada da vida. Dá até vontade de cortá-los a língua para que parem de falar bobagem.
Eu que não experimento disso, eles chama esse líquido sem valor de água. Uma idiotice! Se pelo menos um dia tivessem tido a experiência que tive em minha infância, ai sim saberiam o que é bom. Aquela coisa brilhava era perfumada, suave no sabor, e canção para os ouvidos. Muito diferente desse líquido que chamam de água.
Hoje sou feliz, mas como queria que o pássaro tivesse me dito o nome daquilo que veio sobre mim quando era criança. Lembro-me como se fosse hoje e daria tudo que tenho para sentir aquilo novamente. Não sei se foi só imaginação juvenil, mas como me faria feliz aquela coisa... Deixa isso pra lá, acho que isso não existe, era coisa de criança.
Tenho tudo que quero ter. Só não aguento mesmo ver esses porcos dizendo que podem ser tudo o que quiserem ser se beberem essa tal de água. Quanta tolice, se realmente existisse algo assim tão belo nesse mundo não seria essa tal de água, mas sim aquela coisa da minha imaginação de criança. Pena que o pássaro não me disse o nome daquilo, disse apenas de onde vinha, até hoje me lembro - vinha da cachoeira!
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